No apagar das luzes de 2023 o
governo publicou a Medida Provisória 1205 que cria o Mover, Programa Mobilidade
Verde e Inovação, uma continuação aperfeiçoada do Rota 2030, com a concessão de
muitos bilhões de reais em incentivos tributários para estimular o
desenvolvimento da indústria automotiva no País, mas sem sinais de redução de
preços e estímulo ao crescimento do mercado.
Nenhum problema em incentivar o
desenvolvimento e a produção, no País, de veículos mais eficientes e seguros,
com aplicação de IPI menor e descontos no imposto para quanto mais sistemas de
segurança eles tiverem e mais sustentáveis eles forem na reciclabilidade e nas
emissões.
Inclui-se aí a mundialmente
inédita e muito mais justa adoção de medição de emissões de CO2 do poço à roda
– e do berço ao túmulo a partir de 2027 –, levando em consideração todo o ciclo
de produção e uso do combustível, ou fonte de energia, e do próprio veículo.
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Também não há nenhum problema em
estimular investimentos na produção nacional de veículos com tecnologias mais
avançadas e limpas de propulsão, mirando principalmente a eletrificação, por
meio da concessão de até R$ 19,3 bilhões de créditos tributários nos próximos
cinco anos, na média de R$ 3,8 bilhões por ano – mais do que o dobro da
renúncia fiscal concedida na primeira fase do Rota 2030 de 2018 a 2023, de R$
1,7 bilhão ao ano.
Os incentivos serão concedidos em
troca de investimentos obrigatórios mínimos de 0,3% a 0,6% da receita bruta de
fabricantes de veículos e seus fornecedores em pesquisa, desenvolvimento e
engenharia, incluindo aportes em fábricas, produtos e seus sistemas.
Com isto a cada R$ 1 investido as
empresas terão de volta de R$ 0,50 a R$ 3,20 em créditos tributários que
poderão ser abatidos de qualquer imposto devido. Na primeira fase do Rota 2030
o crédito máximo era de R$ 0,12 por real investido para abatimento somente no
Imposto de Renda ou CSLL, Contribuição Social sobre Lucro Líquido.
Muito menos problema há no aumento
de R$ 200 milhões para R$ 300 milhões e R$ 500 milhões por ano em recursos
direcionados a institutos de pesquisa nacionais para o desenvolvimento de
tecnologias sem produção nacional.
O problema é que nenhum centavo
sequer de todos esses incentivos tem obrigação de chegar na ponta final que faz
girar toda essa cadeia produtiva: o consumidor.
Carro melhor para quem?
Não parece haver dúvidas que os
maiores fabricantes de veículos e autopeças instalados no País vão utilizar o
máximo que puderem essa montanha de incentivos para produzir veículos melhores
do que os já feitos atualmente, mas é claro que vão cobrar por isto.
Todos os fabricantes elegíveis ao
Programa Mover vão utilizar os incentivos para compensar aumentos de custos ou,
muito mais provável, aumentar sua rentabilidade – uma obrigação de qualquer
empresa quando não há qualquer freio em contrário.
Então a indústria fabricará carros
melhores para quem? Para os que puderem comprá-los, que no caso brasileiro são
os poucos mais abastados, menos de 10% dos viventes em terras nacionais.
Isto significa que todos os
avanços e aperfeiçoamentos esperados de eficiência, emissões e segurança terão
alcance bastante reduzido, pois são poucos os que podem pagar pelos benefícios
trazidos pelas novas tecnologias.
Na prática os preços dos veículos,
que no Brasil atingem altas históricas nos últimos cinco anos, vão continuar
altos ou subir ainda mais, com lançamentos de muitos SUVs – ou coisa parecida –
e a óbvia justificativa de que os produtos agregaram maior valor em tecnologia.
Seguindo essa lógica o tíquete
médio de venda de automóveis no Brasil – a soma de todos os preços de tabela
dos veículos vendidos dividida pelo volume de unidades emplacadas – saltou de
R$ 71 mil em 2017 para o dobro disto no fim do ano passado: R$ 140 mil, segundo
monitoramento da consultoria Jato Dynamics. O tal valor agregado está cerca de
R$ 20 mil acima da correção pela inflação IPCA acumulada nestes seis anos.
Ilusão da escala
Se o governo pensou acertadamente
em incentivar a indústria nacional e os benefícios que o setor traz ao País em
desenvolvimento tecnológico e empregos de melhor qualidade, parece ter se
esquecido que também é necessário estimular o mercado para sustentar esse
desenvolvimento. Para isto ao menos parte dos incentivos oferecidos deveria
obrigatoriamente chegar aos preços dos veículos.
A alegação geral do setor e do
governo é que os preços cairão “naturalmente” por efeito do aumento da escala
de produção das novas tecnologias. Mas como se aumenta escala se o mercado não
cresce?
A escala de produção acontece na
mesma medida da demanda do mercado, e não acontece no atual ambiente de preços muito
acima do poder de compra médio da população e financiamentos tão caros quanto
inacessíveis.
Sendo mais direto, alguém tem
realmente a ilusão de que um fabricante vai cobrar menos por um carro híbrido
flex do que cobra hoje por um modelo a 100% a combustão? Independentemente dos
incentivos tributários que este veículo recebe, como o novo IPI Verde criado
agora pelo Programa Mover – que ainda carece de regulamentação – e três pontos
porcentuais de desconto que já são aplicados sobre o imposto desde a primeira
fase do Rota 2030, é absolutamente improvável que a montadora vá baixar o preço
de uma nova tecnologia.
Este exemplo já existe: a Toyota
produz no País versões híbridas flex do Corolla e do Corolla Cross, e ambas as opções
são as mais caras das duas gamas de produtos.
Além do desconto de três pontos
porcentuais no IPI que os dois modelos híbridos já recebem, o powertrain é
importado do Japão com redução quase a zero do imposto de importação, porque
não há fornecedores nacionais. Existe escala e incentivos, mas nada disso chega
ao preço final do produto.
Outro exemplo prático neste
sentido é a multiplicação dos carros turboflex, sempre os mais caros de cada
linha de produtos apesar de receberem incentivos tributários. Os fabricantes
receberam e recebem abatimento de até dois pontos porcentuais do IPI para os modelos
mais econômicos que superaram as metas de eficiência energética impostas pelos
programas Inovar-Auto e Rota 2030, e uma das formas de atingir este objetivo e
ganhar o desconto foi a adoção de motores turbinados.
É mais um caso de expressivo
aumento de escala de produção de turboalimentadores, porque as montadoras
ganham incentivos para adotá-los, mas nada disso é repassado em favor da
redução dos preços.
Incentivo ao lucro
Nada faz crer que algo diferente do
que acontece hoje vá acontecer com as tecnologias agora incentivadas pelo
Programa Mover. A tendência é de alta de preços, não o contrário.
Ainda que o Mover seja um
necessário programa de estímulo ao desenvolvimento da indústria automotiva
nacional, seus efeitos seriam muito maiores e traria mais benefícios à
sociedade se junto com ele fossem adotados mecanismos de redução de preços,
para estimular o crescimento do mercado, estagnado na faixa dos 2 milhões de
veículos por ano desde 2020.
A pressão dos preços altos está
desviando a demanda por veículos no País para a compra de modelos usados cada
vez mais velhos, poluentes e inseguros. Basta observar que, em 2023, de cada
cem automóveis usados negociados 59 tinham mais de nove anos de idade, e 35
mais de treze anos. Este movimento comprova que o mercado brasileiro está indo
na direção oposta do desejado progresso.
Sem o repasse dos incentivos aos
preços o que está sendo incentivado é o aumento dos lucros dos fabricantes e o
envelhecimento da frota.
Este texto contém análises e opiniões pessoais do colunista e não reflete, necessariamente, a opinião da Mobiauto.
Pedro Kutney é jornalista especializado em economia, finanças e indústria automotiva. É autor da coluna Observatório Automotivo, especializada na cobertura do setor automotivo, e editor da revista AutoData. Ao longo de mais de 35 anos de profissão, foi editor do portal Automotive Business, editor da revista Automotive News Brasil e da Agência AutoData. Foi editor assistente de finanças no jornal Valor Econômico, repórter e redator das revistas Automóvel & Requinte, Quatro Rodas e Náutica.
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